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A Mão Invisível de Adam Smith está dando lugar à Mão Digital das Big Techs, que controlam a oferta, a demanda e agora… a decisão.

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Do Mercado aberto ao Jardim murado digital


Durante séculos, a “Mão invisível” de Adam Smith foi o pilar da Teoria econômica, descrevendo como a busca individual por interesses próprios em um mercado livre e competitivo poderia, paradoxalmente, levar ao bem-estar coletivo. A premissa era simples e elegante: A competição regularia os preços, a oferta e a demanda se ajustariam naturalmente, e a alocação de recursos seria otimizada sem a necessidade de uma autoridade central.


Contudo, estamos testemunhando uma transformação sísmica. A praça pública do mercado está sendo substituída por um jardim murado digital, curado e controlado por um punhado de gigantes da tecnologia. A Mão invisível, que guiava, está sendo suplantada por uma “Mão digital” que não apenas guia, mas controla ativamente a oferta, a demanda e, de forma mais crucial, a própria decisão.


Como Economista, proponho analisarmos essa nova realidade não apenas pela ótica Clássica, mas através das lentes estratégicas da Teoria dos Jogos de John Nash, que nos oferece um framework importantíssimo para entender as interações e os equilíbrios de poder na era digital.


A Teoria dos Jogos e o Equilíbrio de Nash: Uma Breve Explicação


Antes de mergulharmos na análise, é fundamental compreender os conceitos que a nortearão. A Teoria dos Jogos é o estudo matemático de tomadas de decisão estratégicas entre agentes racionais. Em vez de ver os resultados econômicos como meras consequências de forças de mercado impessoais, ela os modela como o resultado de um “Jogo” onde cada “Jogador” escolhe sua melhor ação, antecipando as ações dos outros.


O conceito central, desenvolvido pelo brilhante John Forbes Nash, é o Equilíbrio de Nash. Um sistema está em Equilíbrio de Nash quando nenhum jogador pode melhorar seu resultado mudando sua estratégia unilateralmente, assumindo que os outros jogadores mantêm suas estratégias inalteradas. É um estado de estabilidade estratégica, mesmo que o resultado não seja o melhor para todos os envolvidos.


O exemplo clássico é o Dilema do Prisioneiro: Dois suspeitos são presos e interrogados em salas separadas. Se ambos ficarem em silêncio, pegam uma pena leve (ex: 1 ano). Se um delatar e o outro ficar em silêncio, o delator sai livre e o outro pega uma pena pesada (ex: 10 anos). Se ambos se delatarem, ambos pegam uma pena moderada (ex: 5 anos).


Embora a cooperação (ambos ficarem em silêncio) gerasse o melhor resultado coletivo (2 anos de prisão no total), a estratégia racional para cada indivíduo, temendo a traição do outro, é delatar. O Equilíbrio de Nash, portanto, é ambos delatarem, resultando em um desfecho pior para ambos (10 anos de prisão no total) do que se tivessem cooperado.


A Mão Digital: As Big Techs como arquitetas do Mercado


A “Mão invisível” de Smith pressupunha um mercado com múltiplos atores, competição e um fluxo relativamente livre de informações. As Big Techs não apenas operam nesses mercados; elas se tornaram os próprios mercados. Elas são a infraestrutura, as regras e o árbitro, tudo ao mesmo tempo.


Um relatório do Transnational Institute detalha como empresas como o Google, através de seu domínio no mercado de publicidade programática, atuam simultaneamente como compradores, vendedores e mediadores. Alegações em processos judiciais, como o “Projeto Bernanke” e o acordo “Jedi Blue”, sugerem que essas empresas podem manipular os leilões de anúncios para maximizar seus lucros, cobrando mais dos anunciantes e pagando menos aos publicadores. Elas não estão apenas jogando o jogo; elas estão projetando o tabuleiro a seu favor.


Neste novo cenário, a informação, o “lubrificante” da Mão invisível, não é mais um recurso livremente distribuído. Ela é o principal ativo, coletado, processado e monetizado em uma escala sem precedentes, criando uma assimetria de poder colossal.


O Novo Jogo: Um Equilíbrio de Nash Desfavorável


Vamos enquadrar a Economia digital atual como um jogo complexo com três tipos de jogadores: as Big Techs, os Consumidores e os Concorrentes.


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O resultado é um Equilíbrio de Nash estável, porém socialmente subótimo. Nenhum jogador tem um incentivo claro para mudar de estratégia unilateralmente:


Para a Big Tech, reduzir o controle significaria perder vantagem competitiva e lucratividade.

Para o consumidor individual, abandonar a plataforma tem um impacto negligenciável no sistema, mas um alto custo pessoal.

Para o concorrente, um ataque frontal é financeiramente proibitivo e estrategicamente arriscado.


Assim como no Dilema do Prisioneiro, a busca racional pelo interesse próprio de cada jogador leva a um equilíbrio estável, mas que não é o melhor para o coletivo. O resultado é a concentração de poder, a erosão da privacidade e a supressão da inovação competitiva.


A Última Fronteira: O Controle da Decisão


O aspecto mais provocador desta Nova ordem econômica, o “Capitalismo de Vigilância” como cunhado por Shoshana Zuboff, é o controle sobre a própria decisão. A mão digital não se contenta em influenciar o que compramos; ela molda o que queremos comprar.


Através de uma arquitetura de persuasão sofisticada, as plataformas utilizam o que a pesquisadora Isabela de Araújo Santos chama de “Economia psíquica dos algoritmos”. Essa economia opera em duas frentes:


1 - A Matriz Preditiva: Utilizando modelos psicométricos como o Big Five e analisando nosso comportamento digital (likes, compartilhamentos, etc.), os algoritmos preveem nossos traços de personalidade, vulnerabilidades e emoções com uma precisão assustadora. Isso permite uma microsegmentação que vai muito além da demografia, adaptando a mensagem ao nosso estado psicológico.


2 - A Matriz Captológica: Inspirada em teorias behavioristas e consolidada em modelos como o “Gancho” (Hooked) de Nir Eyal, esta matriz visa capturar e reter nossa atenção. O ciclo de Gatilho (uma notificação), Ação (abrir o app), Recompensa Variável (a imprevisibilidade do feed) e Investimento (postar, curtir, comentar) cria hábitos e dependência, mantendo-nos dentro do ecossistema controlado.


O resultado é uma erosão da autodeterminação informativa. A liberdade de escolha, pilar da teoria de Smith, torna-se uma ilusão quando nossas emoções, inseguranças e desejos são sistematicamente mapeados e explorados para guiar nossas decisões em direção a um resultado comercialmente desejável para a plataforma. A mão digital não está apenas respondendo à demanda; ela está fabricando-a.


Como Especialista em Governança de IA, enxergo facilmente acima, um grande desafio: O da manipulação algorítmica


Os "Agentes de Compra" baseados em Inteligência Artificial (IA), como os que operam em grandes plataformas de e-commerce, representam a evolução da "Mão digital" que discutimos anteriormente.


Eles prometem conveniência e personalização, mas carregam um risco intrínseco: A manipulação antiética do consumidor. Esses agentes podem explorar vieses cognitivos, induzir compras desnecessárias ou favorecer produtos de maior margem para a plataforma, em detrimento do melhor interesse do consumidor, como vimos.


O que fazer? Auditar esses Sistemas usando a ISO/IEC 42001


A ISO/IEC 42001, o primeiro padrão internacional para Sistemas de Gestão de IA (SGIA), oferece um framework robusto para auditar esses Sistemas e garantir sua operação ética e transparente.


O objetivo aqui é usar a ISO/IEC 42001 (Sistema de Gestão de IA) para mitigar os riscos de manipulação identificados em minha análise anterior (Teoria dos Jogos), transformando a "Caixa preta" do algoritmo em um sistema auditável e transparente.


Aqui está um esboço de como Auditar e Governar Agentes de compra autônomos, usando a ISO 42001:


Estrutura de Governança de IA: "O Agente Leal vs. O Agente Mercenário"


A premissa central de Governança de IA aqui é garantir que o Alinhamento do Agente seja com o usuário (comprador), e não secretamente enviesado para o vendor (plataforma).


1. Controle de Viés e Equidade (Fairness)


O Risco (Teoria dos Jogos): O Agente privilegia produtos da própria plataforma ou de parceiros que pagam mais (pay-to-play), criando uma concorrência desleal invisível.


Aplicação da ISO 42001 (Anexo A):


Controle de Dados de Treinamento e Validação: Auditoria sobre os datasets que alimentam o sistema de recomendação. O sistema foi treinado desproporcionalmente com produtos de parceiros preferenciais?

Teste de Viés Algorítmico: Exigência de testes A/B onde o sistema deve recomendar o "melhor produto técnico" versus o "produto mais lucrativo". Se houver discrepância sem explicação, há falha de conformidade.

KPI Sugerido: Índice de Diversidade de Fornecedores nas recomendações finais.


2. Transparência e Explicabilidade (Explainability)

O Risco: O Agente diz "Comprei este perfume". O usuário não sabe o motivo. A manipulação ocorre na obscuridade.


Aplicação da ISO 42001 (Controles de Transparência A.8):


Notificação de Critérios de Decisão: O sistema deve ser capaz de responder à pergunta: "Por que você escolheu a Marca X e não a Y?".

Divulgação de Incentivos: Se o algoritmo pondera "comissão de venda" como variável de decisão, isso deve ser rotulado como anúncio/patrocínio, e não como recomendação orgânica.

Requisito de Design: Implementação de "Logs de Raciocínio" acessíveis ao usuário ou auditor.


3. Gestão do Ciclo de Vida e Autonomia (System Lifecycle)


O Risco: O Agente começa a tomar decisões de compra sem o "Human in the Loop", gastando o orçamento do usuário de forma agressiva (lock-in financeiro).


Aplicação da ISO 42001:


Supervisão Humana (Human Oversight): Definição de limites de autonomia baseados em risco. Para compras de baixo valor (sabão em pó), autonomia total. Para alto valor ou itens sensíveis (remédios, eletrônicos caros), o sistema deve exigir aprovação.

Mecanismo de "Kill Switch": Capacidade do usuário revogar a autonomia do agente instantaneamente e resetar o aprendizado de preferências.


4. Avaliação de Impacto (AI Impact Assessment)


O Risco: O Agente manipula o desejo do usuário a longo prazo, estreitando seu gosto pessoal para se adequar ao que é mais fácil de entregar logisticamente.


Aplicação da ISO 42001 (Anexo B - Avaliação de Risco):


Impacto no Consumidor: Avaliar se o sistema reduz a capacidade de escolha crítica do usuário (erosão cognitiva).

Auditoria de Terceiros: As Big Techs (Google/OpenAI) devem permitir que órgãos independentes auditem a lógica de priorização de seus agentes de compra.


Solução 1: Rumo a um Novo Equilíbrio? (Pouco Eficaz)


A transição da mão invisível para a mão digital representa uma das mudanças de paradigma mais significativas na história da economia. A lógica elegante de Adam Smith, que funcionou por séculos em mercados competitivos, encontra seu limite em um cenário onde os próprios mercados são produtos, projetados e controlados por poucas entidades.


A Teoria dos Jogos de Nash nos mostra que o equilíbrio atual, embora estável, é prejudicial. A questão estratégica para reguladores, inovadores e para a sociedade como um todo é: Como podemos alterar as regras do jogo para incentivar um novo Equilíbrio de Nash, que seja mais justo, competitivo e que preserve a autonomia humana?


Algumas possibilidades incluem:


A interoperabilidade forçada (permitindo que usuários migrem entre plataformas sem perder suas redes sociais);

A portabilidade de dados (transformando o lock-in em liberdade de escolha);

A transparência algorítmica (tornando visível a mão digital);

E, mais radicalmente, a redefinição dos direitos de propriedade sobre dados pessoais (transformando o usuário de produto em proprietário).


Solução 2: Estratégica para Governança de IA (Altamente Eficaz)


Ao aplicar a ISO 42001, alteramos o Equilíbrio de Nash de forma ética, sustentável, socialmente justa e robusta.:


Sem Governança: O equilíbrio é a Manipulação Oculta. As empresas ganham manipulando, e o usuário perde sem saber.

Com Governança (ISO 42001): Criamos um equilíbrio de Confiança Verificável.


Isso transforma a Governança de IA não apenas em burocracia, mas em um ativo de marca indispensável para quem quer sobreviver ao uso dos Agentes.


As respostas não são simples, mas o primeiro passo é reconhecer que não estamos mais jogando o mesmo jogo. A mão que nos guia hoje tem um cérebro digital, e seus movimentos são tudo, menos invisíveis.


A pergunta que fica é: Vamos aceitar passivamente esse novo equilíbrio, ou vamos reescrever as regras do jogo antes que seja tarde demais?


E você, como empreendedor ou cidadão digital: Que estratégia você acredita que pode romper esse Equilíbrio de Nash desfavorável?


Referências

[1] Nash, J. F. (1951). Non-Cooperative Games. Annals of Mathematics, 54(2), 286-295.


[2] Birch, K. (2023). Ya no hay mercados: Del neoliberalismo a las grandes empresas tecnológicas. Transnational Institute.


[3] Santos, I. A. (2022). Comportamento: manipulação comportamental em uma economia datificada. JOTA.


[4] ISO; IEC. ISO/IEC 42001:2023 — Information technology — Artificial intelligence — Management system. Geneva: International Organization for Standardization; International Electrotechnical Commission, 2023.

 
 
 

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